sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Le Jardin -Velho Presente


Le Jardin -Velho Presente

            Estreitava-se uma longa faixa de verde-esmeralda constituída de gramíneas nunca notadas frente à grandeza da mansão de sua infância e aos planos surrealmente sobrepostos em diversas dimensões dos arredores. Sobre tal tímido começo de jardim edificavam-se plantas falsamente decorativas: bizarras constituições semi-naturais, que olhares distraídos não distinguiam do nada.
            Vagavam, por aquele planalto escavado e refeito em planícies de algumas dezenas de metros quadrados, somente lembranças de quando crianças por lá corriam, perseguindo, sem aflição, uma felicidade infante, atenta e semioticamente consciente e coerente de seus pensamentos difusos. A mansão era um conjunto de apartamentos, cada um no seu, a desembocarem em automóveis imersos em música contagiantemente oriunda da única coletividade despropositada possível: a das multidões, dos shows, levadas a relacionamentos “menores”. Os planos eram morrinhos retos como os prédios a descerem até uma praça vazia em que somente caminhavam solidões agrupadas, que somente a falta de organização dos habitantes, tão eficientes em seu dia-a-dia, não possibilitara ser um estacionamento de propriedades esnobes.
            Vivia lá, numa solidão de lembranças a se confundirem, num apartamento cheio de escritos à espera da morte indiferente de seu autor e vazio de amigos, que já haviam se ido, filhos, que não possuíam identidade, somente nomes amarguradamente pronunciados em seu esquecimento, um senhor de sotaque levemente afrancesado, imperceptível à medíocre Zeitgeist que não permeava nem deixava de permear as reles consciências de seus vizinhos. Raramente saía de sua quadra, a mesma em que vivera com a mulher, filhos, amigos, vizinhos, que conversavam e partilhavam consigo idéias em um pano de fundo calmo e iminentemente em mudança. Quando saía, era a fim de ir a algum órgão público, perfeito representante da fria personalidade de um mundo cada vez mais desconhecido e que, ao mesmo tempo, não impedia ninguém de o descobrir.
            No centro, a organização fugia-lhe à compreensão: canos esteticamente desordenados em colorações epiléticas iam a qualquer lugar e vinham de lugar nenhum, levando não se sabe o quê. À laia das pessoas, vagando objetivamente por entre vielas enormes a céu abertamente limpo e asséptico.
            O senhorzinho não se sentia perdido, muito pelo contrário, demasiada certeza, encontrava-se extremamente consciente da atual situação: constrastava-a esporadicamente com seus tempos românticos de nuvens e esfumos de Debret e estruturas surpreendentes de Gaudí e Frank Lloyd Wright, já distantes mesmo em sua juventude a assombrar-lhe com a aura dos grandes gênios mortais, porém indissociáveis do futuro.  Pensava assim, e sobre assim às vezes em que escrevia, de resto, o mundo continuava tão normal quanto ao de tempos passados.
            Gostava de escrever sozinho, por entre o decorativo jardim, a rememorar-se de anos como de sonhos, sempre inconscientemente importantes, aguardando o momento certo de, ao aproximarem-se aos poucos, tomarem-lhe a alma de assalto. Ambos criando uma nova realidade, a alma e o senhor, que não se choca com o Real, somente dissolve-se nele, mudando-lhe o gosto ou deixando-lhe alguma incoerência sob forma de precipitado, desprezível essência.
            Maravilhosa incoerência que ocupa despretensiosamente seu ideário já desiludido, lentamente à procura de novos vícios para acumular: iludir-se, já desacreditado, incoerente em sua integridade coesa de sábio desconhecido.
            O jardim abria-se ao velho. Puxava pela maçaneta leve a porta-secreta que escondia uma desestrutura ainda mais secreta. De loucuras de maré baixa, sedimentadas pelo tempo, de viveres de baixa intensidade, de grandezas em suas pequenas partes, infindas, talvez, de emoções inflexíveis de expressão a nunca descobrirem-se por inteiro- para quê? Para mostrar cicatrizes?- de respirações lentas, sem lembranças.
            O novo jardim era significativo e gigantesco, como qualquer coisa aos olho sensíveis de infante, que embaça sua vista no decorrer do viver. Le Jardin era mais belo do que seria a um infante: possuía a benção de dar bálsamo às feridas, que esses não ainda obtiveram, de remover-lhe a impassibilidade, já permeada ao indivíduo mesmo ali, onde haveria justificativa para expulsá-la. A verdura dos labirintos no qual queria perder-se, porém com bússola para poder retornar - não mapa para desiludir em sua totalidade certa. A inexistência da companhia já fúnebre da amada esposa, somente a memória de seu suave toque. O éter do viver com a obrigação de fugir a qualquer realidade.
            Saído do portão, instantaneamente voltava-lhe a racionalidade emotiva de comportar-se, sem quaisquer possíveis oposições em seu interior. Lá, sem culpa, seus belíssimos e ainda mais raros escritos: tolamente verdadeiros.
            Não retornava por seus escritos, que levavam, por meio de suas imperfeições e consciência tóxica ao sonho, sombra à luz onipresente e igual do jardim sem estruturas possíveis fora dele. Depois de os ler não os queimava, ato demasiado dramático, simplesmente os jogava ao limbo: léu e esquecimento de si, um gaveteiro surdo recheado de possibilidades, impossíveis.
            

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