quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Fiat Lux


Fiat Lux

            O gás aleatório agitava-se a nível de redimensionar as forças a seu redor: luz emissa* de sua fraqueza em engrandecer-se e não o poder saía em jatos alternados de diversos campos inúteis frente ao obsessivo fim de fugir, destino de ampliar-se. Vazam por entre as diversas camadas do cada vez mais inconveniente mercúrio -a quem poderia ter devido a vida- enclausurado, resignadamente, não sem algum prazer, na lâmpada, por sua vez limitada ao sol radial que gera ao luzir. É inevitável que vá embora.
            Que se faça a luz, e a sombra se fez. Tudo se fez pelo toque de olhos luminosos** (por quem?) aos arredores inexistentes***. Lamparinas que tentam desvendar as próprias sombras, perfeitas pelo iluminar: seu poste antecedente que o ergue sem ser visto -fazendo-o luz-, a essência que lhe perpassa o interior e fá-lo brilhar.
            Pequizeiros, muros improváveis, casas, palmeiras falsamente decorativas, propriedades estranhamente harmonizadas numa rua comum.
            Luz. O chão de lixa agora arranha mais. Não vejo mais os distantes arredores, só a dor. Um passo, arrastado, só mais um e enfio-me no aconchego até ficar bem. Sim, vou ficar bom e caçar cigarras. Centenas de cigarras, até já começou a chover aquele cheiro de terra molhada, choverão cigarras, milhares de cigarras gordas e barulhentas.
            Por que minha mãe foi embora? Faz tanto tempo e ainda não consegui entender. Meus irmãos, os que viveram, os mortos também brincavam comigo, vieram a se acostumar, o mais velho gosta do buraco na rua detrás dos muros verdes. E essa luz? Era maior, pelo menos antes, e havia um menino perto, bem ali. Minha mãe era linda, de listas avermelhadas e pelo cor de saruê, saruês também gordíssimos e estúpidos, que a minha mãe nos entregava para brincarmos.
Minha perna dói, assim como a do meu irmão mais novo, que se arranhou na cerca, morreu chorando, e a minha mãe teve de fazer-nos come-lo, como as cobras comem os filhos doentes, bichos nojentos! Passam sibilando na grama, à laia do vento nas árvores, a trazer notícias de algum mundo que nunca se virá a conhecer, distante e recheado de significados, talvez subsolos lotados de baratas e lugares para se estar, sozinho, sem dor.                    
             Deve ser horrível morrer envenenado. Um primo meu meteu-se a comer o que os homens lhe davam, estúpido! Puseram-lhe venenos no café-de-uma-manhã-límpida-pós-chuva, morreu sem ver os besouros, os grilos e gafanhotos, mariposas, até as cigarras...
           E como dói...! De repente, essa distância ridícula ficou enorme, cheia de ondulações, onde está minha mãe? Ele morreu estrebuchando, até parar sob os olhares aterrorizados de seus parentes. Naquele dia vi um menino...
           Mais luz?! Esses malditos homens têm preguiça de andar: Por que vão tão longe? Conheci um gato, abestado e esnobe, siamês, que dizia que seus donos (?) iam a lugares estranhos: depois daquele monte de água, fazendo todo dia uma coisa ou outra parecida. Tenho de sair da frente senão matam-me, só isso sabem fazer.
           Nem sinto mais minha perna. O que esses vermes devem estar pensando? Será que pensam? Provavelmente não... Ainda bem que minha mãe não está aqui para ver isso. Seus pelos eram da cor desse carro... Ah, é só a luz. O pelo da minha mãe tinha só a cor da luz?! Dane-se, não interessa, essa luz estranha é desnecessariamente forte, e tinge o céu de laranja quando não deveria. A do carro também é forte, vou-me embora, o buraco é tranqüilo e fundo! Como farei para então sair? Vou morrer novo, sem ver os pequis espinhentos chamando pássaros deliciosos, sem amigos, sem a gatinha de manchas cinzas, sem precisar entender a**** nada, sem dor, talvez.
           Que lindo menino! Ele também tem olhos como os meus. O que faz aqui? O carro já foi embora.
           Ele está olhando para mim, por quê? Também não sei por que me lembro agora de um jardim que nunca vi, repleto de sombras acolhedoras e reentrâncias perfeitas para se descansar. Infelizmente não deve ser real, pois não há teto, nem foco, nem sentido.
           O que dizes menino? Que o sentido é frágil e limitante? Perfeitamente, as coisas, no sentido, existem somente em certeza, nunca em possibilidade de somente poder ser, simplesmente, (dúvida). Aquela casa, por exemplo, é a da gatinha cinza, sim. Também gostaria de saber-lhe os pensamentos, os acontecimentos são extremamente desinteressantes sem eles, meras ocorrências que (não) podem nos maravilhar. A graça é não poder faze-lo? Não concordo, seria muito mais... simples. Porém, deves estar certo, tudo ficaria muito sem sentido.
           O que é você? Não é essa a pergunta? Está bem... Se eu tivesse um desejo? Acho que gostaria de poder entender... Não! Só minha perna, na verdade, é o mais importante. Não podes isso fazer? Talvez minha mãe de volta, com suas listas cor de terra do cerrado, tortas como árvores com jaguatiricas e outros bichos que nunca vi. Em verdade mesmo...
           E tudo começou com(o) um murmúrio, crescente, gigantesco.
           “Sempre essas conversinhas desinteressadas, fúteis, só quero realmente poder te amar...”
           “Ler, dormir, amanhã dar aula.”
           “Uma linha leva a uma maior, D4, CF6...”
           “Aquele livro é bom mesmo.”
           “Então, o vendedor de gado foi seu vingador, e assim as coisas repetir-se-iam, o jogo do sangue...”
           Nada muito claro assim, somente um reflexo que é o verdadeiro, que um prisma torna certo por imagem.
           Então nada, somente as coisas a refletirem a luz, o poste a cria-las: o menino, o carro, os muros, tudo.
           Sem mais luz, o gás aquietou-se.
           Sem a luz, talvez as coisas brilhassem, talvez até mais forte...

*Não sem alguma participação nisso.
**Não com total responsabilidade por isso, imagina-se.
***Essa palavra poderia existir?
****Não fica bem melhor assim?